domingo, 1 de agosto de 2010

Quebra-cabeça

Ela estava há tempos naquele estado, no começou tudo era novo e até achavam graça das suas atitudes, das suas falas desconexas, das suas dores que não existiam, das suas lágrimas sem motivos, dos seus pedidos sem sentido, da sua raiva intensamente passageira.

O tempo foi passando e com ele o pouco de lucidez que lhe restava também, mas essa não lucidez era como combustível para que sua vontade de viver aumentasse. Muitas foram as vezes que a davam como quase morta, mas desconheciam a força que ela levava dentro daquele corpo miúdo e aparentemente frágil.

Das primeiras vezes que contrariando toda a lógica ela voltou de seu estado fúnebre todos davam graças, só que o tempo foi passando como areia que passa entre os dedos e junto com essa areia do tempo a paciência que todos tinham com ela também foi se esgotando.

E ela? Ela continuava, ela se recusava a virar só mais um grão de areia ao vento. Esgotada a paciência alheia ela que até então oscilava entre o mundo real e o mundo criado em sua cabeça, passou a ficar muito e muito mais tempo nesse mundo inventado ou reinventado, mundo esse onde ela ainda tinha mãe, às vezes tinha pai, ainda não tinha enterrado nenhum dos seus filhos, mundo onde ela ainda não tinha sofrido nem um terço das dores que a vida lhe reservava, ela gritava por esse mundo, como se nele ela se sentisse mais viva, mais ela.

Hora nesse mundo ela sentia medo do pulso firme de sua mãe, hora ela se apiedava das dores de seus filhos pequenos, hora ela xingava mulheres que sabe se lá porque ela taxava como prostitutas, hora ela se silenciava, e era nessas horas que ela mais incomodava a todos, era com seu silêncio que ela fazia as pessoas em sua volta pensar o que se passa na cabeça de uma pessoa que se encontra nessa situação, qual seria a parcela de culpa delas que estavam ali a sua volta e que gozavam de perfeita condições mentais e que riram da situação e que já não dispunham mais de paciência para com ela. Elas tinham culpa, ou a culpa era de alguma outra pessoa, ou ser,ou dela mesmo? Havia de fato alguém culpado... Difícil saber.

Mais difícil ainda ouvir os agora constantes choros dela, sim porque por vezes aquele choro sem aparente motivo era cheio de dor, de angústia, não uma dor que se resolveu com analgésico ou morfina, a não ser que inventaram um analgésico ou morfina pra dor na alma, se inventaram esqueceram de dizer pras pessoas que estavam ali perto dela, assim também como esqueceram de dizer pra essas pessoas porque isso estava acontecendo com elas, porque ela esta sendo obrigada a suportar tudo isso e porque eles estão sendo obrigados a suportar ela.

Talvez ela em meio ao turbilhão de pensamentos e sentimentos que se confundem dentro daquele corpo, dentro daquele franzino corpo também se pergunte isso, talvez essa pergunta não seja feita dessa maneira linear, mas quem sabe se conseguíssemos juntar cada peça do que ela fala, do que ela grita, do que ela chora, do que ela faz, no final não conseguiríamos montar um grande quebra cabeça e então lá descobriríamos escritos em letras maiúscula essa pergunta: PORQUE EU SOU OBRIGADA A SUPORTAR TUDO ISSO?

Um comentário:

  1. quando se joga um quebra-cabeça tem-se a nítida impressão de que há muitas peças faltando...
    mas qual não é nossa surpresa, quando findo o quebra-cabeça, este nos revela uma imagem, às vezes até bestinha, patética?
    não somos uns heróis diante daquela imagem patética?

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